31 de outubro de 2020
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“A quem vou comparar esta geração?” (Mt 11,17)

Vivemos tempos conturbados, tanto no contexto sócio-político, como também no contexto eclesial. Não sou, porém, um apocalíptico ou “divulgador de profecia x ou y”. Quem conhece um pouco a história da Igreja sabe que já houve tempos muito mais difíceis e confusos do que o atual. E por acreditar no constante auxílio do Espírito Santo, sou otimista quanto “às crises da Igreja”. Aliás, delas brotaram “sinais de renovação”, “de busca mais verdadeira do Evangelho e da sua própria missão”. Ahh, não faltaram “crises” também naqueles três anos de ministério de Jesus na companhia dos seus discípulos!

O que desejo abordar neste artigo é como chegamos a esse contexto no tempo atual. Adianto que não sou especialista para realizar uma “análise de conjuntura eclesial” com mais precisão e totalidade, mas me aventuro a colocar algumas reflexões que me inquietam.

Temos acompanhado nos últimos tempos, especialmente com o advento das redes sociais, o aumento de canais e de youtuber’s católicos. Isso é bom! Mas, também um risco e que agora já vem demonstrando seus efeitos. Criaram-se os “gurus e os mitos” do ambiente virtual católico. Padres e pregadores leigos que, usando da linguagem própria das redes, conseguiram milhões de “views”, “inscritos”, “seguidores” e “compartilhamentos”.

Conheço pessoas que “só escutam o seu guru”. Ele se tornou “a única e total referência segura da doutrina e da Tradição da Igreja”.  Temos até grupos nas redes com o título “Discípulos do Pe. x ou y”! Nota-se também um crescimento da linguagem apologética (=defesa da fé, usando tom de ataque e insulto aos adversários).

Muito interessante e necessário ser estudado é o “neo-conservadorismo” que – pasmem! – entrou de vez neste ambiente “ultra-moderno” das mídias digitais. O caldeirão vai sendo aumentado quando alguns “youtuber’s” começam a “tática do fogo amigo”, ou seja, de “atacar a própria Igreja”. Ou melhor, aqueles que, segundo eles, são “hereges, traidores da fé, modernistas, comunistas, progressistas, etc, etc…” Chegamos então nos ataques aos padres, aos bispos, à CNBB e até ao Papa.

Disseminou-se um clima de “prévia desconfiança”, incentivaram-se atitudes cada vez mais hostis e combativas, chegando às raias do deboche e do desrespeito. Hoje todo mundo também é um “comentarista eclesial” e foi habilmente estimulado a ir até o perfil da CNBB e desferir suas “críticas”. “Mas, padre – alguém me pergunta – não se pode questionar os bispos ou padres?” Poder questionar é um direito do fiel,  mas o “como” e “onde” é que  merece alguma reflexão.

O Evangelho já nos indicou algo sobre a “correção fraterna” e que há um método para que de fato a “crítica ao comportamento de outrem” seja cristã e para o bem do próximo. Mas, em tempos de “egocentrismo digital” não se pode deixar de “dar a opinião”, não é? “Tenho que “defender a fé!” “Deus vult”, como dizem os “cruzados digitais” do século XXI!  Ou, como é comum ver, “a CNBB não me representa” e outros… e outros…

O Papa Francisco, na sua Exortação Apostólica Gaudete et Exsultate, sobre o chamado à santidade no tempo atual, nos alerta sobre esta presença agressiva de católicos nas redes. Lemos ao n. 115 da Exortação:

Pode acontecer também que os cristãos façam parte de redes de violência verbal através da internet e vários fóruns ou espaços de intercâmbio digital. Mesmo nos media católicos, é possível ultrapassar os limites, tolerando-se a difamação e a calúnia e parecendo excluir qualquer ética e respeito pela fama alheia. Gera-se, assim, um dualismo perigoso, porque, nestas redes, dizem-se coisas que não seriam toleráveis na vida pública e procura-se compensar as próprias insatisfações descarregando furiosamente os desejos de vingança. É impressionante como, às vezes, pretendendo defender outros mandamentos, se ignora completamente o oitavo: «não levantar falsos testemunhos» e destrói-se sem piedade a imagem alheia. Nisto se manifesta como a língua descontrolada «é um mundo de iniquidade; (…) e, inflamada pelo Inferno, incendeia o curso da nossa existência» (Tg 3, 6).

Exortação Apostólica Gaudete et Exsultate, n115

Dias atrás um comentário nas redes sociais me chamou a atenção: ”O Papa Francisco tá rachando a Igreja. O cara perdeu o controle …”. Ao ver tal constatação, se pode perceber até onde aquela onda de “gurus e mitos digitais católicos” está chegando… “Quem está rachando a Igreja” é o Papa? Ou, não seria este “trabalho feito há anos” de arrebanhar “discípulos ou fãs” que alguns “youtuber’s, páginas ou canais católicos” tem realizado? Uma “geração inteira” sendo conduzida habilmente por interesses, nem sempre muito católicos, mas de “certos grupos e suas visões eclesiológicas e políticas”. Esses grupos têm – leia-se “preferem” – até “o seu papa”; tem “seus cardeais”, “seus bispos” e “seus padres”! Quem está, então, espalhando confusão e divisão?

“A quem eu vou comparar esta geração?” (Mt 11, 17) foi a pergunta em tom de desabafo que Jesus deixou escapar vendo a “forma infantil” com que alguns dos seus contemporâneos agiam para desqualificar o seu ministério. Essas pessoas não se davam por satisfeitas, tinham que procurar algo para “criticar”, para “condenar”. Falaram de João Batista que “não comia, nem bebia” e agora falavam do Filho do homem “que come e bebe”. São eternos insatisfeitos e precisam sempre manifestar isso. Se é tempo de tristeza, não choram; se é tempo de alegria, não sorriem…

A pergunta-desabafo de Jesus parece poder ser repetida no  tempo presente…! O que acham?