23 de outubro de 2020
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Morrer com dignidade?

Embora seja difícil compreender e aceitar, o morrer é tão natural como o nascer, o respirar, o conceber, o sentir. Faz parte da vida. Sempre fez. Sempre fará.

E houve momentos, que não estão assim tão longínquos no tempo, em que encaramos o morrer com a naturalidade que lhe é inerente: hoje, porém, já convivemos num outro contexto, com novos problemas. Pandemia: irresponsabilidade globalizada. Interesses obscuros que retardam a cura e acelera “a seleção” dos marcados para morrer.

Convivíamos com a “divinização da medicina”. Até então era verdade absoluta tudo o que vinha da medicina, hoje se olha qual o laboratório ou o fabricante que está por trás de tal receita.

O avanço científico e tecnológico tinha aumentado exponencialmente a esperança de vida dando-nos a quase-ilusão da imortalidade. O que muitos ainda não percebem é que nos trouxe também novos desafios em termos sociais, o envelhecimento das populações e nem sempre nas melhores condições de saúde e, por conseguinte, nem sempre nas melhores condições de independência, o que choca deveras com o individualismo que caracteriza as sociedades modernas, com todas as consequências experimentadas por todos. A supremacia do mercado e a irresponsabilidade dos governos mantêm a chama da morte em alta.

São realidades que não podemos ignorar e para as quais é absolutamente necessário e urgente construir capacidade de reflexões profundas, e possíveis respostas. Não é simples, nem é fácil, porque implica principalmente mudanças de mentalidades, algo sempre muito complexo. E as mentalidades educam-se preferencialmente a partir da infância.

Nesta era em que vivemos, somos todos filhos de gerações educadas de forma superprotegida relativamente à questão da morte, motivo pelo qual não adquirimos competências para lidar com ela. Mas também se faz necessário pensar outra faceta desta história: porque em tempos de pandemia se nega tanto a morte? Seria o medo de encará-la como realidade?

Esquecemo-nos, porventura, que com isso inibimos a verdadeira aprendizagem, pois esta só pode ser feita de forma experiencial, vivenciada, sentida.

Se por um lado o século XX marcou a emancipação sexual e hoje os pais falam abertamente com as suas crianças e adolescente sobre sexo, o mesmo já não se passa com temas como o sofrimento, a doença e a morte. Abolimos o tabu sexual, mas adotamos o tabu da morte. As pessoas já não morrem em casa à vista de todos, morrem nos hospitais. E as crianças são afastadas dos locais onde se morre para precaver supostos traumas. A morte foi deslocada de lugar!

A aprendizagem do significado e do sentir da morte e do processo de morrer é feita com o alienado distanciamento que os desenhos animados e os filmes comodamente permitem. Esquecemo-nos, porventura, que com isso inibimos a verdadeira aprendizagem, pois esta só pode ser feita de forma experiencial, vivenciada, sentida. E com isso, as nossas crianças crescem com uma visão deturpada, porque incompleta, do significado da vida, e consequentemente, da morte.

Na tentativa de deslocamento, a morte parece ter perdido o seu próprio espaço. Pela Eutanásia, o seu lugar é no hospital, frio, distante, solitário; Pela mistanásia, a morte, sem casa, sem hospital, sem médico, a morte peregrina, cruel e miserável. E agora ela nem la e nem cá. Ela chegou para todos indistintamente… embora conserve-se a triste estatística de pobres trabalhadores, negros, idosos e etc continuam sendo suas presas mais fáceis e mais “saborosas”, nos revela a Pandemia do covid-19. Agora podemos nos perguntar: na perda de sua identidade, onde se encontra a morte?