Senhora Santana
Senhora Santana ao redor do mundo
Onde ela passava deixava uma fonte
Quando os anjos passam bebem água dela
Ó que água tão doce, ó Senhora tão bela!
Encontrei Maria na beira do rio
Lavando os paninhos do seu bento fio
Maria lavava, José estendia
O Menino chorava do frio que sentia
Calai meu menino, calai meu amor
Que a faca que corta não dá tái sem dor.
(Coral das lavadeiras de Almenara)
Evocando o bendito medieval, resgatado por Carlos Farias e pelo Coral das Lavadeiras, temos uma pista sobre traços representativos de Sant’ Ana Mestra, sem, no entanto, deixar de apresentar aspectos significativos de sua devoção no país, regularmente apontados por pesquisas diversas, e das quais não poderemos escapar. Reportemo-nos a alguns aspectos das representatividades de Sant’Ana, atrelado a questão do cotidiano, e as possibilidades de identificação popular.
A cantiga, epígrafe acima, foi retirada do encarte CD Aqua (2004). Um trabalho empenhado por Carlos Farias e pelo Coral das lavadeiras de Almenara. O cenário é composto de um espaço aberto de convivência entre mulheres lavadeiras, sempre à beira do rio, em pleno contato com a natureza, em que cantam histórias de ensinamentos e de convivência familiar. As composições, contadas ou cantadas por populares, embora sejam consideradas pela crítica canônica como gêneros menores, fazem parte do patrimônio cultural imaterial e religioso, de um povo, por isso também é importante garantir-lhes visibilidade. O julgamento se dá pelo fato de essas composições serem transmitidas de geração em geração, o que as fazem sofrer transformações por acréscimos e supressões. O que, para os críticos, prejudicaria a originalidade dessas produções. Acredita-se que as possíveis identificações e as memórias populares, podem ter possibilitado a sua resistência ao tempo, e sobrevivência até a contemporaneidade.
Na canção “Senhora Santana”, a temática diz muito sobre episódios do cotidiano de uma família em especial. Trata-se de uma alegoria, uma representação, que estabelece o contraste entre fecundidade e privação, por meio da evocação de laços domésticos entre Sant’Ana, a Virgem Maria, São José e o menino Jesus. Sant’Ana foi a mãe de Maria e avó de Jesus. No canto, a água da fonte, deixada por Sant’Ana, por onde passa, pode representar uma nascente geradora, em que até os anjos bebem sua água. A fonte está relacionada à vida, à juventude e também à doutrina e instrução (fonte de sabedoria). É o exemplo de uma mulher, cheia de virtudes, que submersa em Deus é geradora de vida (Maria), em benefício de muitos. Também por isso, a virgem Santíssima e Sant’Ana estão profundamente interligadas. A mesma lírica apresenta o recorte de uma segunda mulher (Maria), ocupada em lavar os paninhos de seu filho (Jesus), ao tempo em que seu esposo, São José, se ocupa em estendê-los. O menino Jesus chora de frio, pois as roupas estavam molhadas. Esse gênero literário possui a capacidade de exprimir e acordar sentimentos análogos ao ouvinte/leitor. Por isso a possibilidade de identificações.
A lírica é o retrato muito próximo das realidades de muitas famílias, que vivem de forma simples, sem muitos recursos, e em meio às privações de conforto. Além disso, traz o ensinamento de que é preciso calar o choro, pois a faca só corta em meio à dor. Assim sendo também a vida de todos, feita de sofrimentos e dificuldades, a serem superadas. Isso poderia servir de alento para as mulheres que, ao vislumbrarem uma santa, também sofrer privações junto a seu bebê, encontrariam consolo e força para superarem dificuldades iguais. Então, percebemos as perspectivas da fonte, e da escassez, dentro do plano da realidade humana, enquanto possibilidade de gerar assimilações. O que seria mais que suficiente, para defendermos o não apagamento das devoções e histórias.
Dentro do ponto de vista da não visibilidade, são muitos os escritos ainda pouco conhecidos e/ou valorizados, a exemplo da importante obra “Vida, Paixão e Glorificação do Cordeiro de Deus”, narrada por Ana Catarina Emmerich, e anotada por Clemente Brentano. A Obra foi autorizada pela igreja para impressão, em sua terceira edição, em 1960; traduzida por Linguistas Jesuítas para o latim, hebreu e aramaico, o texto serviu de base para o roteiro do filme “A Paixão de Cristo”, dirigido por Mel Gibson.
Na obra, a piedosa freira narra experiências do dia-a-dia e da origem familiar de Sant’Ana. Segundo as narrações de Ana Catarina, “Sant’Ana descende, pelo pai, da tribo de Levi, e pela mãe, da de Benjamin” (EMMERICH, 1960, p.27). A santa teria nascido em Belém, mas viveu em Seforis, próximo de Nazaré. Lá Sant’Ana e São Joaquim teriam se encontrado e travado conhecimento. Viveram uma vida piedosa em Eliud, e depois em Nazaré. Segundo a narrativa, o casal rezava muito, com grande devoção e davam esmolas. Por não ter filhos, Sant’Ana vivia em crescente tristeza. Um dia o anjo lhe aparecera anunciando que Deus lhe ouvira a oração, ela “conceberia uma filha santa e escreveu o nome Maria na parede”. (EMMERICH, 1960, p.29). Naquele momento, a abundância da graça visitou a santa, e deu existência à Virgem Maria. Assim, Ana e Joaquim foram aptos para receberem Maria, a filha que Deus escolheu para ser a Mãe do Redentor da humanidade. O casal viveu, até o fim da vida, em louvor a Deus, em santidade, transbordantes de alegria e felicidade. Sant’Ana é festejada em muitos países, e de forma mais intensa na Europa e América latina, especificamente em Portugal e Brasil.
As procissões no nosso país datam a partir de 1549; trazidas pelos colonizadores portugueses, são ainda hoje praticadas em todo território nacional. Encontrando no país um território fértil, a devoção a Sant’Ana se espalhou por todo o interior. Avó materna de Jesus Cristo, Sant’Ana é lembrada como protetora da família, das mulheres casadas e das grávidas. Sant‘Anna foi bastante difundida também como uma santa, que tinha forte relação com a educação das moças. Ela é representada sentada, trazendo sobre os joelhos um livro aberto; abraça a sua filha, e com o olhar terno e fraterno, mostra-lhes passagens do livro, como que a instruindo. Em virtude de suas atribuições de protetora da família e modelo de mãe cristã, o culto a Sant’Ana espalhou-se rapidamente. Diversas comunidades festejam a santa, adotando-a como modelo de progenitora e mestra, a ser seguido. Em nossos dias, ainda se faz presente a visibilidade e importância da santa, vislumbrada no período medieval. É uma santa de grande prestígio em muitas regiões do Brasil, sendo lembrada todos os anos por um grande número de devotos. Alguns atribuem esse prestígio junto ao povo, ao “jogo” das identidades, em que traços e virtudes em Sant’Ana, seriam exemplos para um povo, que mesmo consciente de suas limitações, anseia em seguir os preceitos da tradição cristã, a exemplo de sua excelsa padroeira. Sant’Ana, avó de Jesus, sabe dar carinho, atenção e aconchego, que somente as avós podem dar a seus netos. Por isso, recorramos com confiança a Sant’Ana, para pedir as graças de que precisamos, especialmente as de maiores urgências e necessidades.
Por Nilzabete Oliveira/Caetité
REFERÊNCIAS
EMMERICH, Ana Catarina e as anotações de Clemente Brentano. Vida, Paixão e Glorificação do CORDEIRO DE DEUS. 3.ª ed. – Juiz de Fora, Minas Gerais – Livraria Editora: Lar Católico, 1960.
MORAIS, Aldilene Lopes de, Imagens de Sant‘Ana: história, cultura e representação na Amazônia Paraense/ Aldilene Lopes de Morais. – 2015. Orientador: Roberta Alexandrina da Silva. Dissertação (Mestrado) – Universidade Federal do Pará, Campus de Bragança, Programa de Pós-Graduação em Linguagens e Saberes na Amazônia.
https://pplsa.propesp.ufpa.br. Acesso em 26/06/21, às 16h30 min.
www.acidigital.com. Acesso em 27/06/21, às 10h13min.