26 de março de 2016
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Queima ou Malhação do Judas

judinhas

A prática de malhar o Judas veio da tradição ibérica que aqui chegou com a colonização portuguesa.

Sabemos pela história que o Brasil é uma mescla de várias culturas. Vários elementos culturais se fundiram, criando assim diversas manifestações folclóricas e religiosas. E isso é muito bonito, pois expressa a beleza, a riqueza e a resistência do povo que “teima em celebrar, em festejar” mesmo em tempos difíceis.

Em se tratando de religião, devemos lembrar também que há aquela religião chamada “oficial”, regida pelas normas da Igreja e, paralela a esta, e não necessariamente contraditória, encontraremos uma “religiosidade popular” que mistura elementos folclóricos junto à fé cristã. Sobre essa religiosidade popular os bispos latino-americanos no Documento de Aparecida expressaram – fazendo eco às palavras do papa João Paulo II – que esta religiosidade se constitui um “verdadeiro tesouro” da Igreja Católica neste continente. Ela é um local de encontro com o Cristo vivo! Contudo, faz-se também menção da necessária “purificação e evangelização” desta piedade popular. 

Atenho-me neste ponto para trazer algumas reflexões sobre a “queima ou malhação de Judas”. Esta prática veio da tradição ibérica que aqui chegou com a colonização portuguesa. Trata-se da prática de “punir publicamente” aquele que traiu Jesus, ou seja, o apóstolo Judas Iscariotes que o entregou por trinta moedas de prata. Pierre Verger, conhecido antropólogo francês que se dedicou a estudar e descrever as tradições culturais da Bahia, diz assim sobre esta “malhação de Judas”:

O Sábado Santo, ou Sábado da Glória, ou ainda, Sábado de Aleluia, é também chamado dia de Judas, porque a efígie do traidor é arrastada ignominiosamente pelas ruas, e torna-se objeto de vingança popular. Esses bonecos são pendurados em árvores ou em cordas estendidas entre dois balcões. Eles representam Judas ou o Diabo, e são vestidos com roupas mais modernas, destinadas a mostrar que um bom número de Judas, que circulam habitualmente nas cidades, deveriam ter a mesma sorte. Todos esses bonecos são recheados com fogos de artifício. Logo que eles são acesos, as explosões se sucedem, fazendo-os dançar de maneira grotesca, e seus corpos, em pedaços, enchem as ruas, provocando combates encarniçados entre as crianças que disputam os restos. (VERGER, Pierre. Notícias da Bahia, 1850, Currupio, 1981, p. 89)

O que dizer de tal costume? Tem algo de bom e de edificante para a fé cristã? É uma prática recomendada pela Igreja? É justo e necessário “condenar e punir Judas”?

Em primeiro lugar, é bom que se diga que a Igreja Católica recomenda aos fiéis que o Sábado Santo seja um dia de espera, de silêncio. A espiritualidade deste dia convida a “estar próximos à sepultura do Senhor”. À noite, com a celebração da Solene Vigília Pascal, é que voltamos a nos alegrar pelo Senhor que venceu a morte e as trevas. Aqui cantaremos “Aleluia”, manifestando profunda alegria por este acontecimento inaudito: a Ressurreição de Cristo! Começamos assim o tempo litúrgico da Páscoa que se estenderá até o Domingo de Pentecostes!

Sendo assim, não deveria haver algazarras, barulhos e coisas deste tipo nesse dia! Em muitos lugares, a “malhação de Judas” ocorre exatamente ao meio-dia do sábado!

Acrescenta-se a esta motivação mais teológica, outras:

  1. A prática da “Malhação de Judas” é uma demonstração de violência e de incentivo a esta, ainda que seja somente uma encenação teatral. Não seria bom pensar nisso, especialmente na nossa sociedade atual onde de fato a violência, a vingança e o ódio sempre mais se fazem presentes desde os lares até os locais públicos? Pensemos nas crianças que veem e participam de tal demonstração de ódio e vingança! Que valores cultivarão no seu interior? Será que esta vingança contra Judas tem algo a ver com o verdadeiro cristianismo que prega o perdão e a reconciliação?
  2. Sabe-se também que em muitos lugares a “Malhação de Judas” serve para que outros personagens sejam motivos de deboche e piadas. Fala-se de um “testamento” onde Judas deixaria as indicações para algumas “pessoas da comunidade”. O que pensar disso? Quantas pessoas são vítimas de brincadeiras de mau gosto e que as expõe ao ridículo? Será que apresentar as pessoas não bem quistas da comunidade às piadas e deboches de todos é mesmo necessário? Quais os critérios o “tal Judas” que escreveu o testamento usou? Será que ele não queria vir à desforra contra seus desafetos? E o que não dizer aqui de tantas situações como competições, inimizades políticas e coisas assim…?
  3. Há também nesta prática algo que pode remeter a uma aversão aos judeus. Em Judas estaria caindo toda a revolta contra “os judeus” que prenderam e mataram Jesus. Esta atitude chamada anti-semitismo que muito esteve presente na consciência de cristãos de várias épocas não pode ser continuadamente propagada. Não podemos culpar o “povo judeu” como um todo pela morte de Jesus!
  4. A “festa” que muitos dizem ser uma “tradição” acaba servindo de pretexto para que a bebedeira e com ela outras conseqüências sejam o saldo deste evento.

Tais constatações fazem com que possamos dizer que a “Malhação de Judas”, ainda que queira trazer certos aspectos ou motivações de fundo “religioso”, não seja uma prática incentivada e apoiada pela Igreja Católica. Como foi dito anteriormente, ela se insere neste conjunto de práticas de uma certa “religiosidade popular” que, contudo, não edificam a pessoa para o convívio com Deus e com o seu próximo. Não creio que prestamos nenhum favor a Jesus Cristo, arrastando, batendo, debochando e punindo “Judas” como é feito por aí? Agora seria muito bom e necessário, olhando para este personagem bíblico, nos perguntar o motivo de tantas “traições” que cometemos. Traições contra nós mesmos, contra a nossa consciência. Quantas vezes  também “vendemos” a nossa consciência e os nossos valores?  Traições contra o próximo, à família, os amigos. Traições contra Deus por tantas vezes o esquecermos ou no lugar dele colocarmos qualquer outra coisa, inclusive a nós mesmos… Será que somente Judas traiu ???

  Pe. Eutrópio Aécio de Carvalho Souza
Comunidade Sacerdotal “In solidum” – Brumado-BA